Demanda e oferta entre gigantes

Uma nova geografia no comércio e investimentos do agronegócio. Se antes o maior fluxo de comércio bilateral de alimentos era entre os Estados Unidos e o Japão, hoje as rotas têm novo destino. Isso porque, países com vastas terras aráveis e potencial para expansão, em especial o Brasil, são protagonistas para suprir a demanda da China, cuja população é de cerca de 1,4 bilhão, ou seja, dez vezes a do Japão.

Por lá, além do evidente crescimento populacional, o aumento da demanda por alimentos também tem ligação histórica. Entre 1958 e 1962, o país sofreu com diversos problemas que resultaram na morte de aproximadamente 45 milhões de pessoas, em um período conhecido como “A Grande Fome”. Ainda que o número de vítimas seja controverso, já que o período foi pouco discutido e praticamente se ausenta dos livros didáticos, a Grande Fome chinesa foi uma das maiores catástrofes mundiais e deixou a população em alerta, tanto para produzir como para ter acesso aos alimentos, tornando a segurança alimentar um requisito fundamental atualmente. Aliás, o filósofo Mêncio, discípulo de Confúcio, chegou a dizer que nutrir o povo é o primeiro princípio de governo, tamanha importância do tema para os chineses.

E se a demanda asiática é grande, a capacidade produtiva brasileira também é. Segundo maior produtor de alimentos do mundo, o país conta com as maiores extensões de terras agricultáveis do planeta, além de vocação única para manejar as particularidades da agricultura tropical. A junção de necessidade e oferta, para Marcos Fava Neves, especialista em planejamento estratégico do agronegócio, aproxima cada vez mais os dois países. “É nosso maior cliente, criamos uma ‘ponte de alimentos’ com a China. Os chineses vieram ao Brasil nos anos 2000 e compraram cerca de 500 milhões de dólares em alimentos e produtos do agronegócio. Em 2018, esse número ficou em cerca de 30 bilhões de dólares”, comenta Fava (artigo completo na página 28).

Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior, em 2018 o Brasil exportou um recorde de quase 84 milhões de toneladas de soja em grão aos chineses, aproveitando-se de disputas políticas entre os asiáticos e americanos, além do maior apetite chinês pela oleaginosa brasileira. No caso da soja, especificamente, o consumo do grão aumentou 160% entre 2000 e 2011, quando foram removidas as barreiras às importações, com o país incorporando-se à Organização Mundial de Comércio (OMC) em 2001.

Já o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) estima que a China importará 122 milhões de toneladas de soja até 2021/2022 com uma tendência que se intensifica a partir de então e alcançaria as 200 milhões de toneladas em 2025.

Produção segue em alta

Para 2019, ao menos no campo, as perspectivas para o agronegócio brasileiro, em linhas gerais, se mantêm otimistas para duas das maiores culturas produzidas no Brasil: soja e cana-de-açúcar. A terceira estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a safra 2018/19 sinaliza a possibilidade de recorde na produção de grãos, podendo chegar a 238,41 milhões de toneladas, um crescimento de 4,6% sobre a safra anterior em uma área de quase 62,5 milhões de hectares, adicionando 760 mil hectares.

Em soja, o Brasil poderá colher, pelos números do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), cerca de 122 milhões de toneladas e exportar mais de 80 milhões (6% a mais que nesta safra). A Conab é um pouco mais conservadora, estimando produção de 120 milhões. “Preocupa o calor excessivo destes dias, além da falta de chuvas neste início de ano. Vamos observar a próxima estimativa e as produtividades que vêm sendo atingidas na soja colhida”, avalia Marcos Fava Neves, especialista em Planejamento Estratégico do Agronegócio.

Já a consultoria INTL FCStone, em sua primeira estimativa para safra 2019/20 de cana-de-açúcar no Centro-Sul do Brasil, prevê uma perspectiva de moagem praticamente estável, uma alta na oferta de açúcar e, consequentemente, uma redução na de etanol sobre a safra 2018/19. A consultoria aponta um processamento de 564,7 milhões de toneladas de cana no período que se iniciou em 1º de abril deste ano, leve queda de 0,4% ante o total de 567 milhões de toneladas de cana previsto para a atual safra.

Desafio “made in China”

Mas, nem tudo são motivos para comemorar. Quem poderia imaginar há alguns anos que um problema na China afetaria a safra agrícola brasileira? Muito provavelmente, esta é uma variável impensável aos mais antigos, mas que se mostrou imponente com a globalização vivida, principalmente no setor de defensivos agrícolas, em que grande parte da matéria-prima utilizada tem origem asiática.

Por conta da política de recuperação ambiental implantada naquele país, diversas fábricas foram fechadas e, como consequência, houve uma redução significativa na oferta de insumos em diversas partes do mundo. “Por conta da diminuição da oferta, para 2018 era esperado o aumento médio de 30% no preço de alguns produtos, além de possíveis interrupções de fornecimento, o que exige planejamento dos produtores para as próximas safras”, segundo nota do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg).

Das fábricas que estão paradas, muitas foram fechadas definitivamente e outras deverão se ajustar à normativa mais estrita para voltar a operar. Até lá, no entanto, as empresas fabricantes de defensivos agrícolas se movimentam para amenizar os impactos, e assim, contribuírem com os bons resultados do agronegócio brasileiro.

Marcelo Abdo, vice-presidente da Ourofino, explica que todo o mercado mundial de defensivos agrícolas sofreu e ainda sofrerá impactos com a reestruturação chinesa. “No início, os altos estoques no canal de distribuição no Brasil amenizaram o problema no tocante ao consumidor final, no caso, o produtor. Com o passar do tempo, os estoques foram diminuindo e um repasse ao valor se tornou inevitável”.

O executivo explica que a Ourofino vem trabalhando no fortalecimento de uma estrutura de suprimentos, dentre outras ações para mitigar os impactos deste novo cenário. “Mantemos em Shangai, na China, uma equipe especializada e focada em mitigar o risco de fornecimento e nos aproximar dos atuais fornecedores, além de prospectar novos. O trabalho é feito in loco e, assim, o relacionamento é estreito, o que possibilita checar a produção dos fornecedores, garantindo o padrão de qualidade exigido. Trabalhamos por uma estratégia assertiva, que minimize os problemas em nosso dia a dia nas importações”.

A atuação da Ourofino em Shangai com uma equipe formada por engenheiros busca facilitar processos regulatórios de produção e supply, com finalidade de prospecção e validação de novos fornecedores e tecnologias industriais.

Duelo de gigantes

Os desafios chineses não se resumem a oferta de alimentos e nem aos ajustes ambientais no país, mas entra na lista também a disputa comercial com os americanos, tema recorrente nos jornais mundiais. O problema começou depois que o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou em 22 de março de 2018 a intenção de impor tarifas de US$ 50 bilhões a produtos chineses, baseando-se na Lei de Comércio de 1974 e, citando um histórico chinês de “práticas comerciais desleais” e roubo de propriedade intelectual. Em retaliação, o governo chinês impôs tarifas em mais de 128 produtos norte-americanos, incluindo principalmente a soja, uma importante exportação dos EUA para a China.

De lá para cá, muita coisa aconteceu e a cada dia surge um novo cenário. O fato é que a disputa trouxe reações imediatas ao Brasil. Antes mesmo do fim de 2018, as exportações do Brasil à China já haviam batido recorde, sobretudo pela venda da soja, que de janeiro a outubro, somaram 53,2 bilhões de dólares, alta de 28,8 por cento ante igual período de 2017. A China, que já é o maior parceiro comercial do país, aumentou ainda mais seu peso nessa relação, abocanhando 26,7 por cento de tudo o que o Brasil vendeu nos 10 primeiros meses do ano, uma fatia também histórica.

Contudo, especialistas afirmam que é preciso cautela, uma vez que as retaliações entre as duas maiores potências do mundo podem, em breve, afetar o crescimento econômico global. “Acho que a melhor posição é ficar equidistante, não tomar partido. Temos de colocar o interesse nacional acima de tudo”, afirmou o embaixador Rubens Barbosa, que atuou em Washington entre 1999 e 2004. “No curto prazo, (a disputa comercial) é muito positiva, se o Brasil souber aproveitar. No longo prazo, é ruim para todo mundo”, disse ele em entrevista à Reuters.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, executivos de grandes multinacionais estão cada vez mais temorosos quanto ao rumo do embate. Para o canadense Yuwa Hedrick-Wong, economista-chefe global da Mastercard, Estados Unidos e a China estão se aproximando de uma nova guerra fria, que teria implicações de longo alcance para a economia global. Ele esteve em Bangcoc, na Tailândia, durante a Conferência Global de CEO´s da Forbes. É aguardar para saber quais serão os próximos desdobramentos dessa história.

Ficou interessado? Quer saber mais?